domingo, 28 de fevereiro de 2016

Quantos anos tenho?
José Saramago

Tenho a idade em que as coisas são vistas com mais calma, mas com o interesse de seguir crescendo.

Tenho os anos em que os sonhos começam trocar carinhos com os dedos e as ilusões se transformam em esperança.

Tenho os anos em que o amor, às vezes, é uma chama louca, ansiosa para se consumir no fogo de uma paixão desejada. E em outras, uma corrente de paz, como um entardecer na praia.

Quantos anos eu tenho? Não preciso de números para marcar, pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo caminho, ao ver meus sonhos destruídos…
Valem muito mais que isso.

Não importa se faço vinte, quarenta ou sessenta!
O que importa é a idade que eu sinto.

Tenho os anos de que preciso para viver livre e sem medos.
Para seguir sem medo pelo caminho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.

Quantos anos tenho? Isso não importa a ninguém!
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e sinto.
– José Saramago –

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A Velha Amiga
Rachel de Queiróz

O Estado de São Paulo, Caderno 2, p. 49, 13 de janeiro de 2001 
Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro. Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual. Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais. Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou exprimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir. E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade – mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais. Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medidas, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.

A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído. E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos. Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

OFICINAS DE REVISÃO DE VIDA

O GEPEV está com inscrições abertas para o projeto de extensão OFICINAS DE REVISÃO DE VIDA para idosos a partir de 60 anos residentes em Goiânia/GO. O projeto funciona da seguinte forma: 1 entrevista individual e 10 encontros grupais para rodas de conversa sobre histórias e estórias de vida.
O projeto é gratuito e vinculado ao Centro de Psicologia da UFG.
Interessados entrar em contato por email (primlima@ufg.br).

Quando o inverno chegar


RUBEM ALVES 
São Paulo, terça-feira, 03 de março de 2009 
Folha de S. Paulo, Cotidiano


Para esconder a realidade da velhice, diz-se, elegantemente, que se trata de uma pessoa "idosa" ou da "terceira idade"




EU ESTAVA ASSENTADO no palco e observava o auditório lotado. Muitas cabeleiras brancas, muitas cabeleiras grisalhas e muitas calvas brilhantes. Era um público de gente velha. Estavam lá para me ouvir. Havia sido anunciado que eu faria uma fala sobre a terceira idade. Mas eu teria preferido que tivessem anunciado uma conversa sobre velhice... Acho a palavra "velhice" mais poética que a expressão "terceira idade"...



Mas essa palavra "velhice" não aparecia no convite. A "linguagem politicamente correta" a havia proibido. Referir-se a alguém como um "velho" era grosseria, ainda que ele ou ela, por força dos anos já vividos, fosse na realidade um velho. Por vezes, a realidade ofende e é preciso criar máscaras e disfarces para escondê-la. Para esconder a realidade da velhice, diz-se, de forma elegante, que se trata de uma pessoa "idosa" ou da "terceira idade".



Eu não me considerava idoso e nem me colocava dentro do conjunto da terceira idade, muito embora um repórter de um jornal da minha cidade tenha chamado de "ancião" um senhor de 50 anos que fora atropelado. Segundo os critérios desse jovem, se eu fosse atropelado seria imediatamente promovido à categoria de "ancião"...



Feitas as introduções e apresentações preliminares, chegou a minha vez. Fiz silêncio. Olhei demoradamente para os idosos que esperavam de mim um elogio à terceira idade e comecei:
"Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a esse glorioso momento da sua vida em que podem se entregar à felicidade de serem totalmente inúteis...".



Aí aconteceu o que eu sabia que aconteceria. Não me deixaram continuar. Fui imediatamente interrompido por protestos indignados. Todos queriam provar a sua utilidade. Um dos idosos contou sobre a sua horta. Um senhora descreveu as colchas de retalhos que fazia. Um outro contou sobre o hobby que desenvolvera fazendo brinquedos artesanalmente...



Deixei que falassem à vontade. Eu os havia provocado de propósito. Falavam movidos pela ideologia da nossa sociedade, que julga as pessoas da mesma forma como julga as lâminas de barbear, as esferográficas e os filtros de café...Uma lâmina de barbear rombuda, uma esferográfica esgotada, um filtro de café usado deixaram todos de ter utilidade e vão para o lixo. O mesmo acontece com os seres humanos que deixaram de ser úteis.



Esgotada a indignação contra mim, acalmados os ânimos, a palavra me foi devolvida: "A Nona Sinfonia de Beethoven é absolutamente inútil. Não há coisa alguma que se possa fazer com ela. Mas uma vassoura, ao contrário, é muito útil. Serve para varrer, tirar o lixo, eliminar as teias de aranha... Vocês estão me dizendo que preferem a vassoura útil à Nona Sinfonia inútil...



Vejam esse poeminha da Cecília Meireles: "No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta. No planeta, um jardim. No jardim, um canteiro. No canteiro, uma violeta. E na violeta, entre o mistério do Sem-Fim e o planeta, o dia inteiro, a asa de uma borboleta".
Pra que serve esse poema? Prá nada. É inútil. Já o papel higiênico é muito útil... Vocês estão me dizendo que, no seu julgamento, o papel higiênico vale mais que o poema...


Repentinamente os rostos indignados se abriram em sorrisos. E aprenderam a sabedoria dos poetas e artistas, tão bem resumida no aforismo de William Blake:
"No tempo de semear, aprender.
No tempo de colher, ensinar.
E quando o inverno chegar, gozar...".