RUBEM
ALVES
São
Paulo, terça-feira, 03 de março de 2009
Folha de S. Paulo, Cotidiano
Para
esconder a realidade da velhice, diz-se, elegantemente, que se trata de uma
pessoa "idosa" ou da "terceira idade"
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EU ESTAVA ASSENTADO no palco e observava o auditório lotado. Muitas cabeleiras
brancas, muitas cabeleiras grisalhas e muitas calvas brilhantes. Era um público
de gente velha. Estavam lá para me ouvir. Havia sido anunciado que eu faria uma
fala sobre a terceira idade. Mas eu teria preferido que tivessem anunciado uma
conversa sobre velhice... Acho a palavra "velhice" mais poética que a
expressão "terceira idade"...
Mas essa palavra "velhice" não aparecia no convite. A "linguagem
politicamente correta" a havia proibido. Referir-se a alguém como um
"velho" era grosseria, ainda que ele ou ela, por força dos anos já
vividos, fosse na realidade um velho. Por vezes, a realidade ofende e é preciso
criar máscaras e disfarces para escondê-la. Para esconder a realidade da velhice,
diz-se, de forma elegante, que se trata de uma pessoa "idosa" ou da
"terceira idade".
Eu não me considerava idoso e nem me colocava dentro do conjunto da terceira
idade, muito embora um repórter de um jornal da minha cidade tenha chamado de
"ancião" um senhor de 50 anos que fora atropelado. Segundo os
critérios desse jovem, se eu fosse atropelado seria imediatamente promovido à
categoria de "ancião"...
Feitas as introduções e apresentações preliminares, chegou a minha vez. Fiz
silêncio. Olhei demoradamente para os idosos que esperavam de mim um elogio à
terceira idade e comecei:
"Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a esse glorioso
momento da sua vida em que podem se entregar à felicidade de serem totalmente
inúteis...".
Aí aconteceu o que eu sabia que aconteceria. Não me deixaram continuar. Fui
imediatamente interrompido por protestos indignados. Todos queriam provar a sua
utilidade. Um dos idosos contou sobre a sua horta. Um senhora descreveu as
colchas de retalhos que fazia. Um outro contou sobre o hobby que desenvolvera
fazendo brinquedos artesanalmente...
Deixei que falassem à vontade. Eu os havia provocado de propósito. Falavam
movidos pela ideologia da nossa sociedade, que julga as pessoas da mesma forma
como julga as lâminas de barbear, as esferográficas e os filtros de café...Uma
lâmina de barbear rombuda, uma esferográfica esgotada, um filtro de café usado
deixaram todos de ter utilidade e vão para o lixo. O mesmo acontece com os
seres humanos que deixaram de ser úteis.
Esgotada a indignação contra mim, acalmados os ânimos, a palavra me foi
devolvida: "A Nona Sinfonia de Beethoven é absolutamente inútil. Não há
coisa alguma que se possa fazer com ela. Mas uma vassoura, ao contrário, é
muito útil. Serve para varrer, tirar o lixo, eliminar as teias de aranha...
Vocês estão me dizendo que preferem a vassoura útil à Nona Sinfonia inútil...
Vejam esse poeminha da Cecília Meireles: "No mistério do Sem-Fim
equilibra-se um planeta. No planeta, um jardim. No jardim, um canteiro. No
canteiro, uma violeta. E na violeta, entre o mistério do Sem-Fim e o planeta, o
dia inteiro, a asa de uma borboleta".
Pra que serve esse poema? Prá nada. É inútil. Já o papel higiênico é muito
útil... Vocês estão me dizendo que, no seu julgamento, o papel higiênico vale
mais que o poema...
Repentinamente os rostos indignados se abriram em sorrisos. E aprenderam a
sabedoria dos poetas e artistas, tão bem resumida no aforismo de William Blake:
"No tempo de semear, aprender.
No tempo de colher, ensinar.
E quando o
inverno chegar, gozar...".