quinta-feira, 3 de março de 2016

Um dos textos discutidos durante o último semestre foi "A transitoriedade" escrito por Freud em 1916 e que tece reflexões bem interessantes para o estudo da velhice.

A TRANSITORIEDADE (1916)

TRADUÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL FOLHA DE S. PAULO, EM 23 DE SETEMBRO DE 1989, Caderno Letras.

Algum tempo atrás, fiz um passeio por uma rica paisagem num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem, mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo.
Sabemos que tal preocupação com a fragilidade do que é belo e perfeito pode dar origem a duas diferentes tendências na psique. Uma conduz ao doloroso cansaço do mundo mostrado pelo jovem poeta; a outra, à rebelião contra o fato constatado. Não, não é possível que todas essas maravilhas da natureza e da arte, do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora, venham realmente a se desfazer em nada. Seria uma insensatez e uma blasfêmia acreditar nisso. Essas coisas têm de poder subsistir de alguma forma, subtraídas às influências destruidoras.

Ocorre que essa exigência de imortalidade é tão claramente um produto de nossos desejos que não pode reivindicar valor de realidade. Também o que é doloroso pode ser verdadeiro. Eu não pude me decidir a refutar a transitoriedade universal, nem obter uma exceção para o belo e o perfeito. Mas contestei a visão do poeta pessimista, de que a transitoriedade do belo implica sua desvalorização.

Pelo contrário, significa maior valorização! Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade. É incompreensível, afirmei, que a ideia da transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona. Quanto à beleza da natureza, ela sempre volta depois que é destruída pelo inverno, e esse retorno bem pode ser considerado eterno, em relação ao nosso tempo de vida. Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humanos no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhes acrescenta mais um encanto. Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso. Tampouco posso compreender por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam ser depreciadas por sua limitação no tempo. Talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos se reduzam a pó, ou que nos suceda uma raça de homens que não mais entenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os seres vivos deixem de existir sobre a Terra; mas se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela, e portanto independe da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas notei que não produziam impressão no poeta e no amigo. O fracasso me levou a concluir que um poderoso fator emocional estava em ação, perturbando o julgamento deles, e depois acreditei que eu tinha encontrado. Deve ter sido uma revolta psíquica contra o luto, o que depreciava para eles a fruição do belo. Imaginar que essa beleza é transitória deu àqueles seres sensíveis um gosto antecipado do luto pela sua ruína, e como a psique recua instintivamente diante de tudo que é doloroso, eles sentiram o seu gozo da beleza prejudicado pelo pensamento de sua transitoriedade.

Para o leigo, o luto pela perda de algo que amamos ou admiramos parece tão natural, que ele o considera evidente por si mesmo. Para o psicólogo, porém, o luto é um grande enigma, um desses
fenômenos que em si não são explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras. Nós possuímos — assim imaginamos — uma certa medida de capacidade amorosa, chamada libido, que no começo do desenvolvimento se dirigia para o próprio Eu. Depois, mas ainda bastante cedo, ela se dirige para os objetos, os quais, por assim dizer, incorporamos em nosso Eu. Se os objetos são destruídos, ou se os perdemos, nossa capacidade amorosa (libido) é novamente liberada; pode então recorrer a outros objetos em substituição, ou regressar temporariamente ao Eu. Mas por que esse desprendimento da libido de seus objetos deve ser um processo tão doloroso, isso não compreendemos, e não conseguimos explicar por nenhuma hipótese até o momento. Só percebemos que a libido se apega a seus objetos e, mesmo quando dispõe de substitutos, não renuncia àqueles perdidos. Isso, portanto, é o luto.

A conversa com o poeta aconteceu no verão antes da guerra. Um ano depois rompeu a guerra e despojou o mundo de suas belezas. Destruiu não só a beleza das paisagens por onde passou e as obras de arte que deparou no caminho, mas destroçou também nosso orgulho pelas realizações da cultura, nosso respeito por tantos pensadores e artistas, nossa esperança de uma superação final das diferenças entre povos e raças. Maculou a altiva imparcialidade de nossa ciência, mostrou nossa vida instintiva em toda a sua nudez, libertou os maus espíritos que existem em nós, os que julgávamos domados para sempre, por séculos de educação através das mentes mais nobres. Tornou nosso país novamente pequeno e o resto do mundo novamente distante. Despojou-nos de muitas coisas que amávamos, e revelou a fragilidade de tantas outras que acreditávamos sólidas.

Não é de estranhar que a nossa libido, tão empobrecida de objetos, tenha se ligado com intensidade tanto maior àquilo que nos restou, que o amor à pátria, a ternura pelos mais próximos e o orgulho pelo que temos em comum tenham se fortalecido subitamente. E aqueles outros bens agora perdidos tornaram-se realmente sem valor para nós, por terem se revelado tão frágeis e sem resistência? Muitos entre nós pensam assim; mas injustamente, afirmo outra vez. Creio que os que têm essa opinião e parecem dispostos a uma renúncia permanente, já que o precioso não demonstrou ser durável, acham-se apenas em estado de luto pela perda. Sabemos que o luto, por mais doloroso que seja, acaba naturalmente. Tendo renunciado a tudo que perdeu, ele terá consumido também a si mesmo, e nossa libido estará novamente livre — se ainda somos jovens e vigorosos — para substituir os objetos perdidos por outros novos, possivelmente tão ou mais preciosos que aqueles. Cabe esperar que não seja diferente com as perdas dessa guerra. Superado o luto, perceberemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta da sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.

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